Violência contra a criança: permitida?

Há três anos, num canavial na zona rural de Araçatuba, um fazendeiro foi pego em flagrante com duas meninas em sua caminhonete, sendo uma delas de 13 e a outra de 14 anos. Elas estariam realizando um programa em que receberiam 30 e 50 reais, respectivamente. A conjunção carnal foi comprovada com a garota mais nova. Apesar de ter sido preso, o fazendeiro foi liberado após 40 dias e, no dia 16 de junho de 2014, o
Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu inocentá-lo.

Infelizmente a prostituição infantil é algo recorrente no Brasil e vem sendo pouco discutida, ou tampouco combatida, como deveria. Exemplo disso, conforme ressaltado durante a Copa do Mundo - evento muito associado ao turismo sexual - foi a falta de campanhas de desincentivo ao turismo sexual e, principalmente, à da prostituição infantil. Casos de homens que são pegos tendo relações com garotas pré-adolescentes são muito frequentes e, em muitos deles, a Justiça assume uma postura machista, inclusive colocando-se contra a lei.

De acordo com o Código Penal, Art. 217-A, ter conjunção carnal com menores de 14 anos implica uma pena minima de 8 anos de reclusão. A Justiça, porém, no caso citado de Araçatuba e em muitos outros inocenta o agressor. Essas decisões costumam ser pautadas na ideia de que as meninas eram garotas de programa e que, portanto, haviam perdido a pureza e a inocência que caracterizaria a infância. Como afirmou o acórdão, julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça em um outro caso ocorrido em 2012 (no qual um homem fora acusado de estuprar três meninas de 12 anos): “As vítimas […] já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo. Embora imoral e reprovável a conduta praticada pelo réu, não restaram configurados os tipos penais pelos quais foi denunciado''.

Como explicita a decisão judicial acima, existe na nossa sociedade um "culto à pureza" tão intenso que a gravidade da violência carnal contra uma menina já iniciada sexualmente (iniciação essa que pode ter sido forçada ou impulsionada pela falta de alternativas de vida) é diminuída. Nossa sociedade, machista, mostra um comportamento vicioso em relação a essas meninas, frequentemente as culpando pelas violências sofridas.

Esse culto dita comportamentos às mulheres desde o enxoval rosa e se estendendo ao longo de suas vidas. Essa imposição se dá de maneira coercitiva, determinando praticas sexuais (inclusive quando e como deve ser a perda da virgindade), e sociais (como roupas e falas "adequadas"). No caso de Araçatuba, a Justiça considerou que a menina de 13 anos, por não se encaixar no padrão esperado para a idade dela, poderia se passar por mais velha. E isso serviu de argumento para inocentar o fazendeiro, poderoso, que deveria ser considerado culpado por estupro de vulnerável.

Outro caso sobre um padastro que manteve relações sexuais com sua enteada de 13 anos, embora tenha recentemente sido condenado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, fora absolvido em 1ª e 2ª instâncias. Não obstante este caso do padrasto seja um precedente de jurisprudência que pese positivamente na defesa dos direitos da criança, o assunto está longe de ser consenso nas casas da lei - no Habeas Corpus 73.662/1996, um ministro do Supremo relativizou a presunção de violência considerando que houve “consentimento” e que a aparência física e mental da menina parecia de alguém com mais de 14 anos.

O que significam essas decisões? O não enquadramento da lei negligencia a violência sofrida pelas meninas e protege o infrator. Evidencia-se, dessa forma, um comportamento machista (para não dizer pedófilo) com o qual nossa sociedade e Justiça são demasiado complacentes, corroborando para sua perpetuação. Dessa forma, ela se comporta de maneira não esperada, pois coloca-se do lado do agressor ao invés de defender a vítima.

A Justiça, que deveria proteger as pessoas em situação de maior vulnerabilidade, regularmente acoberta os casos de violência contra meninas, e assim abre portas para legitimar sua continuação. A sensação de impunidade incentiva novas ocorrências e, mais uma vez, a sociedade retroalimenta comportamentos violentos que, mais cedo ou mais tarde, favorecem a maior incidência de violências contra a mulher. É preciso não só exigir que a Justiça se policie permanentemente para não incentivar e reproduzir preconceitos (machismo, racismo, homofobia), mas também exigir que seja cumprida a lei - todo ato sexual com pessoas com menos de 14 anos configura estupro de vulnerável.

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